Tomei um banho maravilhoso de chuva, na véspera do dia em que meu filho nasceu. As contrações, ainda leves, vinham acontecendo desde a madrugada de domingo, e na manhã da segunda Dan passou lá em casa e verificou que o trabalho de parto ainda não estava engrenado de verdade. Ela foi embora, e as contrações também... E então, à noitinha, eu e Leo resolvemos ajudar no processo: namoramos, bebi chá de canela e, seguindo conselho de Dan, fomos passear na praça de Casa Forte. Depois de dar uma única voltinha, a chuva começou a cair bem forte, logo na hora em que passei junto da árvore de mamãe. Leo ficou preocupado, querendo andar rápido – e eu querendo ir devagar, sentindo que era uma preparação, que não era só meu corpo que estava sendo lavado. Um vigia de prédio ainda acenou pra mim, oferecendo abrigo, mas o que eu queria era realmente me encharcar daquela água.
Dan voltou e passou a noite conosco, e ninguém dormiu direito. O que eu sentia mais eram as costas, e ficar deitada quando a dor vinha era quase insuportável. Ela e Leo se revezavam nas massagens, um alívio providencial. Avisamos a Leila e a Thayssa, e na manhãzinha da terça-feira elas chegaram, por volta das sete horas. Depois de um toque, viram que o processo estava bem encaminhado e seguimos para o hospital De Ávila. Cerca das nove da manhã, eu já tinha oito centímetros de dilatação e estava me sentindo tranqüila. Leo também parecia ótimo - aliás, talvez pelo fato de se sentir confiante na equipe médica, ficou sereno durante o processo todo, coisa que me surpreendeu.
Eu tinha várias fantasias ruins sobre como seria a internação: pensava em dificuldades, que não ia ter vaga... E pensava também que seria proibida de parir usando recursos mais humanizados de parto, como infelizmente tem acontecido em outros hospitais do Recife. Mas a equipe do De Ávila surpreendeu a todos nós: me recebeu sem problemas, apesar das confusões com meu antigo plano de saúde, e deixou que se instalasse uma piscina inflável em pleno quarto, sem que eu precisasse ir para a sala de cirurgia. De repente, eu tinha a possibilidade de ter o parto dos meus sonhos: na água, com uma equipe médica em quem eu confiava, e com a presença não de uma, mas de duas doulas!
Piscina cheia de água quente, lençol verde quebrando a luz da janela, e até um cedezinho de fundo, tocando no laptop de Melania... Entrei sozinha n’água, pensando que Leo ajudaria do lado de fora – mas ele, por inveja ou esperteza, enfiou-se n’água também, de cuecas - afinal, eu não era o único ser grávido daquela sala, ora!
Aí, veio o medo.
Medo de não dar conta.
Medo de não conseguir fazer força com a barriga e expulsar o bebê.
Engraçado: eu não tinha medo da dor em si, de “não agüentar o sofrimento”, como muitas mulheres alegam.
Meu medo era reflexo de tudo que me foi dito ao longo da gravidez, e por mais que racionalmente eu soubesse que não era verdade, meu inconsciente acreditava que eu era imperfeita e sem condições de parir uma criança.
Senti uma falta enorme, aguda, de minha avó e minha mãe, sabendo que aquele momento era uma passagem para uma condição diferente, e que não teria comigo a presença física delas. Minha mãe me disse uma vez que jamais deixaria um filho dela sozinho, sentindo medo... Mas onde estava ela agora, de onde eu ia tirar forças?
Tive vontade de chorar e não consegui, o desespero não deixava.
Comecei a ficar irritada com as pessoas ao meu redor, não queria que ninguém me tocasse na hora da dor, pedi para desligarem a música, e apesar de cercada por cinco pessoas atentas às minhas reações, creio que nunca me senti tão sozinha. Essa “travada” demorou um bocado: Antonio só nasceu no fim da tarde.
O cansaço de estar efetivamente sem comer nem dormir direito desde domingo – e dormindo mal já durante vários dias, sem achar posição confortável por causa da barriga – acabou vencendo e me ajudou a entrar numa espécie de transe. Eu já não sabia direito onde estava, e entre uma contração e outra, cochilava apoiada na borda da piscina.
Num dado momento, Leila quis fazer um toque e saí da água. Não lembro se depois voltei ou se foi aí que Melania sugeriu que eu experimentasse o banquinho, para ficar de cócoras. Concordei, embora a idéia de que o filhote nascesse na água fosse mais poética...
Leo sentou por trás de mim, no banquinho de parto, e as quatro ficaram na frente, nas posições mais variadas, tentando achar espaço no quarto que estava meio apertado (Leila mesma ficou espremida embaixo de uma pia). Eu sentia a dor, mas continuava achando que não ia conseguir (!).
Comecei a gritar alto, até ficar rouca, e creio que muita gente no hospital achou que eu estava morrendo, reforçando a impressão de que parto normal, e ainda por cima “a cru”, é algo excruciante. Só depois, nas fotos, vi a cara preocupada da pediatra de plantão, que certamente não tem muita vivência neste tipo de parto...
Os berros eram mais de pânico que de dor, mas eu não sabia disso naquele momento. Curioso é que, em momento nenhum, pedi ou achei que precisasse de anestesia.
Uma hora alguém disse que a cabecinha dele estava aparecendo, e eu não acreditei (!). Tentaram me mostrar com um espelho, e eu já meio desesperada com a dor das contrações e do tal “círculo de fogo”, não consegui ver nada. Até que tiraram uma foto e vieram me mostrar. Foi o suficiente para eu focar na expulsão e, algumas contrações depois, meu filho pulou de dentro de mim, escorregadio e todo sujinho de vérnix. Eram quatro e doze da tarde do dia nove de outubro de 2007.
A dor passou instantaneamente.
Eu, feito bicho, segurei meu filhotinho e fiquei cheirando e beijando aquela coisinha minúscula por um tempo que não sei precisar. Não contei os dedos dele para ver se estava tudo certo, como as pessoas dizem que as mães fazem. Eu só queria olhar a carinha dele, senti-lo perto do meu coração.
Eu, feito bicho, segurei meu filhotinho e fiquei cheirando e beijando aquela coisinha minúscula por um tempo que não sei precisar. Não contei os dedos dele para ver se estava tudo certo, como as pessoas dizem que as mães fazem. Eu só queria olhar a carinha dele, senti-lo perto do meu coração.
Entre uma lágrima e outra, apoiada no peito de Leo, passei a mão no cordão umbilical e me assombrei com a grossura daquilo e com o fato de que continuava pulsando, levando sangue, alimento, de mim para meu filho. De uma forma indissolúvel, nós dois éramos uma coisa única.
Senti como que um atordoamento lúcido, uma sensação concreta de que eu era mãe, mulher, poderosa: igual a qualquer mamífera, e ao mesmo tempo, especial e abençoada. Duvido que alguém consiga expor em palavras a sensação que é, fisiológica e psicologicamente, passar por um parto sem intervenções. Não digo que quem fez cesárea seja menos mãe, mas deixa de sentir essa avalanche de hormônios e sentimentos.
Leo, abraçado a nós, também foi envolvido nesse turbilhão, e resplandecia. Ele, que engordou e teve desejos durante a gravidez, foi ao berçário aprender a trocar fraldas e só não deu de mamar porque até agora os peitos dele não jorraram leite...
Não senti qualquer dor quando a placenta foi expulsa, mal me dei conta. Só olhava para Antonio, meu filho, meu. Aconchegado nos meus braços e mamando com força. Ele nasceu com uma marquinha vermelha na testa, sinal que deve sumir gradativamente ao longo dos meses e que parece uma borboleta, um coração, um anjo. E também com um dentinho incisivo, coisa que eu nunca tinha visto mas que, segundo disse a pediatra, não significa nenhum problema.
Leo cortou o cordão umbilical, Antonio berrou protestando, e quando a pediatra pediu licença para pesá-lo e avaliá-lo, sem sair do quarto, deixei-o nas mãos do pai e fui andando, sozinha, para o banheiro, e tomei uma ducha.
Não precisei de episiotomia (“pique”) nem de pontos. Não tive laceração significativa, apesar do meu meninão ter medido 54cm e pesado 3,860 kg. Antonio não foi aspirado, não sofreu nenhuma manipulação invasiva, não foi levado para o berçário e ficou direto conosco, no quarto onde nasceu.
Depois que as médicas foram embora, e que minha prima Dione veio me visitar, por volta das 19h, tive um “passamento”, por assim dizer. Senti como se tivesse uma placenta extra a ser expulsa, e na verdade tive um hematoma na vulva, coisa inevitável e rara de acontecer. Graças a Deus não fiz uma cesárea, porque senão ia ter perdido ainda mais sangue e a coisa ia ficar mais feia: fui ao banheiro e tive uma hemorragia enorme; só deu tempo de ligar para Leila e falar o que estava sentindo, antes de derrubar o celular no chão. Fiquei cinza, inconsciente, e depois soube que minha taxa de hemácias tinha caído para um terço do nível normal (eu já tinha uma anemia séria e crônica, anterior ao parto). Foi um choque feio e a sensação que Leo teve é de que eu ia morrer.
Não lembro de nada direito, apenas que minha prima ficou meio desesperada e que Leila e Melania voltaram para o hospital, para tomar as devidas providências (acabei tendo que receber três bolsas de sangue). Nada do que disse ou que me disseram ficou gravado em minha memória. Mas, já mais tarde, quando eu estava meio dormindo, Leo afastou-se (entrou no banheiro) e eu tive a nítida sensação de que havia alguém dentro do quarto, me olhando. Comentei com ele e a impressão que tivemos foi a mesma: é provável que ela estivesse comigo. Eu não poderia mesmo estar sozinha numa hora dessas.
17 comentários:
...
(identificação, emoção...
não acho as palavras...)
E a gente tem palavras pra falar disso, de verdade?
Que bom tê-la aqui, querida.
Beijo grande.
Parabéns, Mariana. Sinto-me tão pequena perante esse turbilhão de emoções! Você é incrível.
Que bom vê-la aqui, Cris. Beijão!
Lindo, Mari. Emocionante. Lindo, lindo.
Gio...
Que saudade.
Um cheiro...
Não contive o riso e o choro. Parabéns, Mari. Um beijo, Juliana
Lindo... Caiu uma lagriminha!
Nossa parabéns, seu relato é de inspiração, coragem, determinação e vitoria. Parabéns para seu esposo tmb.
Cheguei aqui pelo orkut, a comunidade das mães do recife. O relato do teu parto é lindo... O meu também foi natural, sem anestesia, sem episiotomia. Lindo, lindo, lindo!
Fiquei fã do blog, sua fã, e muito mais fã ainda dos partos naturais!!!
ah, e a gente tem um monte de amigas em comum!
Ah, Mari! Só pelas fotos já dá uma emoção de parir de novo!
boas recordações...
Lindo relato, Mariana! Emocionante!!! Não tenho palavras, tudo tão intenso...
Beijo grande!
Mariana, que lindo relato... Que trajetória maravilhosa!!!
QUE LINDO...VC É REALMENTE UMA GUERREIRA E UM EXEMPLO A SER SEGUIDO POR TODAS AS MULHERES, QUERO TER A METADE DA SUA FORÇA E DETERMINAÇÃO NA MINHA HORA...
Ai meu Deus, decidi ler seu relato pra ver se mudo de idéia em relação ao parto, mas só de ver sua expressão de dor eu já sinto a dor tb. E assim como vc, o meu medo não é tanto da dor e sim de me sentir incapaz de ter forças, de falhar e meu bebê morrer por isso. Acho q mesmo com todos os riscos vou optar pela cesárea.
Lindo demais, seu relato!!!
Super emocionante!!!
Que Deus abençoe você e sua família, hoje e sempre!
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